terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Escola pobre campeã do Enem motiva e atrai até estudantes da rede privada

Lucivaldo Nascimento é o único estudante da sua turma de medicina da Universidade Federal de Sergipe que trabalha durante o curso.

Desdobra-se entre as atividades práticas da graduação, em Aracaju, e as aulas de biologia que ministra, desde 2006, na escola estadual Dr. Milton Dortas, em Simão Dias (a 100 km da capital).

A presença dele na universidade e na escola representa um capítulo especial para a cidade. Lá, em 2012, diante do descrédito da maioria dos estudantes em ingressar na universidade, Nascimento fez uma proposta aos alunos: "Vou me inscrever no curso mais concorrido do vestibular. Não vou só ensinar, vamos estudar juntos". Um grupo de 30 alunos topou o desafio.

Com aulas de reforço aos sábados, que o professor ofereceu voluntariamente, houve aprovações já naquele ano –dois passaram em medicina. O próprio professor também conseguiu e se forma médico no ano que vem.

"Muitos alunos moram em povoados na área rural, são de famílias muito pobres, e não tinham motivação para o vestibular", conta Nascimento, 43. "Aos poucos, a cabeça foi mudando e criou-se a motivação que estava perdida", completa, ao ressaltar a importância da Lei de Cotas, de 2012, para o processo.

Assim, a escola viveu uma transformação. No Enem 2016, obteve o melhor desempenho entre todas do país com perfil similar: unidades com alunos pobres e que concentram muitas matrículas.

A Folha calculou as médias dos alunos no Enem 2016 por escola, levando em conta o nível socioeconômico das unidades. Pesquisas mostram forte relação entre esse perfil socioeconômico e o desempenho escolar dos alunos.

A escola de Sergipe tem características desafiadoras. São 1.200 alunos de ensino médio. Em 2016, havia 245 no 3º ano, e 216 fizeram o Enem.

A média da escola, de 499,75 pontos, corresponde a estudantes da manhã, tarde e noite. É superior à média das escolas estaduais do país, da rede estadual de Sergipe e de escolas do mesmo nível socioeconômico ("baixo").

Em 2017, 58 alunos conseguiram vaga na federal de Sergipe. No total, cerca de 150 egressos chegaram a faculdades públicas e particulares.

Os bons resultados no exame se repetem nos últimos três anos. A diretora, Daniela Silva, 31, explica que as primeiras aprovações foram um marco, "ao mostrar que era possível". Mas uma nova postura do trabalho pedagógico foi também essencial.

"A direção passou a ser mais rígida. As aulas são planejadas desde o início do ano para serem mais contextualizadas, voltadas para o Enem e para a vida", diz Daniela.

Os alunos contam com orientação psicológica, discutem-se os planos de vida e profissional e há aulas de reforço aos sábados. Projetos de música, dança e esportes também têm papel importante.

Os bons resultados têm atraído alunos da rede particular. Neste ano, 40 jovens migraram de duas escolas privadas para o Milton Dortas.

Filho de uma pedagoga, Tarcísio Renner, 16, fez essa mudança. "Minha mãe queria que eu ficasse na particular, mas eu insisti. As turmas lá eram menores, mas aqui eu sinto que tenho voz e o ensino é muito bom", diz ele, que quer cursar engenharia da computação e é vice-presidente do grêmio estudantil.

Simão Dias é um município pobre do interior de Sergipe. O Índice de Desenvolvimento Humano está abaixo da média do país e do Estado. O perfil da população se reflete na escola, que era a única de ensino médio da cidade até 2017, quando um novo prédio foi inaugurado.

Muitos alunos são filhos de agricultores que não terminaram a educação básica. No ano 2000, menos de 1% dos jovens de 18 a 24 anos estavam no ensino superior. Em 2010, o índice ainda era baixo, mas já passava dos 6%.

A baixa escolaridade das mães representa mais um desafio para o sucesso escolar. A mãe de Verônica Santos, 16, concluiu a 4ª série, e o pai, agricultor, é analfabeto.

Aluna do 3º ano, fez o último Enem. Não conferiu o gabarito, de nervoso, mas acredita que consegue uma vaga na federal em direito ou odontologia. "É uma oportunidade única estar aqui. Mas como a escola tem fama de ser boa, gera uma pressão."

O colega Paulo Henrique Souza, 18, também no 3º ano, quer engenharia civil. "O melhor aqui são os professores."

A escola atende jovens do centro da cidade e de 75 povoados rurais. Todos os dias, um ônibus escolar também faz o transporte de alunos que moram em assentamentos de reforma agrária, a cerca de 30 minutos de lá.

A aluna Ana Carolina dos Santos, 16, vive desde que nasceu no assentamento 8 de Outubro. Um pequeno e organizado vilarejo vinculado ao MST, cercado pelos lotes de plantio de milho e abóbora administrados pelos assentados desde 1998.

Na casa onde mora com a mãe, o padrasto e a irmã, a conversa sobre os planos da universidade é diária.

"Tento mostrar que a vida não é fácil. A gente só tem oportunidade se tiver estudo", diz a mãe, Maria Aparecida dos Santos, 38, que é faxineira e responsável pelo plantio do seu lote. Carolina quer medicina. "Quero me formar e ser uma grande médica pediatra. É meu sonho."

Mesmo com bons resultados, a escola enfrenta dificuldades comuns à rede pública. Somente após alunos ocuparem a escola em 2016, em protesto contra a reforma do ensino médio, a unidade recebeu reformas que esperava havia quatro anos (as salas ainda não têm ar-condicionado). Também há faltas temporárias de professores, como o de física no último semestre.

O mais grave problema é uma alta taxa de reprovação, sobretudo no 1º ano (de 23%). O que colabora para um índice preocupante no abandono escolar: 17% em toda etapa.

Daniela Silva, a diretora, diz ter ciência do desafio. "Muito do abandono é reflexo dos problemas sociais, mas temos nos empenhado para reduzir esses índices", diz. "Há um mês, ligamos para 200 pais".

Em 2018, a escola inicia o modelo de ensino integral, o que deve reduzir o número de alunos. O desafio para a gestão será manter neste modelo os alunos mais pobres, que em geral precisam trabalhar e têm dificuldade de ficar na escola em tempo integral.


Fonte: Folha UOL, 31/12/2017.

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