Nas duas últimas décadas, uma hegemonia discursiva sobre a educação se afirmou de modo penetrante. A narrativa neoliberal demonstrou extraordinária capacidade adaptativa ao assimilar as palavras-chaves do discurso que se apresentou como a sua crítica, concentrada na idéia de “exclusão e inclusão social” e educação.
Essa hegemonia discursiva incorpora, no sentido neoliberal, formulações, palavras e imagens provenientes das lutas e da produção de conhecimento na universidade e nas entidades acadêmicas. A incorporação dessas expressões ressignificadas confere ao discurso hegemônico uma embalagem “progressista”, dita pós-neoliberal, e amplia a sua eficácia ideológica.
Para melhor compreender a hegemonia neoliberal na educação é importante problematizar o pressuposto de que tal discurso é um caleidoscópio, marcado por mosaicos refeitos permanentemente. Existe uma hegemonia de sentidos que confere coesão e coerência ao discurso e, em termos materialistas, essa hegemonia tem de ser pensada considerando a correlação de forças entre as classes sociais. A despeito de nuances, os discursos pósmodernos, neodesenvolvimentistas e “pósneoliberais” não escapam do campo ideológico dominante. Seus fundamentos, diagnósticos e alternativas desembocam no mesmo campo, esboçado a seguir.
Diagnóstico: o sistema de educação público é ineficiente, de baixa qualidade, ministrado por professores desprovidos de responsabilidade social e indiferentes às múltiplas identidades dos pobres. É, em uma palavra, excludente. É, portanto, responsável pela exclusão social e pela pobreza. Como as políticas públicas centradas no Estado falharam, é preciso promover parcerias com a sociedade civil, em especial com as organizações imbuídas de responsabilidade social e comprometidas com o desenvolvimento sustentável. A participação da sociedade civil é indispensável para identificar os grupos vulneráveis de excluídos que precisam ser “empoderados” para que adquiram empregabilidade ou se afirmem como empreendedores, condições para a inclusão social e a cidadania e, assim, garantir a paz social e a governabilidade.
Alternativas: a melhoria da qualidade da educação tem de ser baseada em indicadores objetivos conferidos por sistema externo de avaliação que fundamentem as metas a serem alcançadas. O alcance das metas exige o envolvimento de novos parceiros da sociedade civil. Os docentes devem ser estimulados por meio de recompensas que envolvam toda a escola. Para ser inclusivo, é imprescindível que o ensino seja focado em competências condizentes com as múltiplas identidades dos pobres e produzam resultados práticos imediatos, como o alivio à pobreza.
Privatização da educação
Esse campo discursivo hegemônico desconsidera o capitalismo, as classes sociais, o bloco de poder e o padrão de acumulação do capital.Trata-se de uma sociedade civil composta de indivíduos e organizações de caráter neofilantrópico que manejam a educação de modo que ela naturalize as profundas desigualdades de classe e o desemprego estrutural, a expropriação e a hiperexploração. Ao focalizar a educação nas identidades, definidas muitas vezes por categorias importadas de outros contextos, contribui para implodir qualquer projeto de educação pública universal e unitária.
Essa agenda neoconservadora (“neo” pois incorpora perspectivas antes críticas) resulta da relação de classes característica do capitalismo dependente, tal como definido por Florestan Fernandes. A agenda é encaminhada localmente pelas frações locais da burguesia, que recontextualizam as formulações dos organismos internacionais.
Entre os intelectuais coletivos que contribuíram para sua recontextualização no país, cabe citar o Programa de Reforma Educativa na America Latina (PREAL/ USAID), o movimento “Brasil Competitivo” nos anos 1990 a meados da presente década e, mais amplamente, o “Compromisso Todos pela Educação”, a rigor, um lobby das grandes corporações dos setores financeiro, agro-mineral, comunicação, editorial, telefonia e informática.
A principal medida educacional do governo Lula, o Plano de Desenvolvimento da Educação, expressa a agenda dos setores dominantes, servindo de referência para que estados e municípios se lancem em corrida rumo às parecerias públicoprivadas, principalmente com organizações que lideram o “Todos pela Educação”, como Itaú-Social, Airton Senna, Roberto Marinho, Vitor Civita, entre outros.
A maior ameaça é que o referido movimento avance na política de que o Estado deve abandonar suas escolas públicas, ofertando-as à gestão privada. Esse risco é real e imediato, como se depreende das reivindicações do PMDB ao programa da nova presidente Dilma Rousseff:
a) “Estender o sistema do ProUni aos níveis fundamental e médio de ensino”. Assim, o repasse de verbas públicas para as entidades privadas-mercantis seria ampliado também para as escolas do ensino fundamental e médio.
b) “Fazer, a partir da transformação do ensino médio, uma revolução de qualidade do ensino público em todos os níveis. Adotar um ensino capacitador, com foco no básico – análise verbal (português) e análise numérica (matemática)”. Em suma, também no ensino médio, bastam as primeiras letras na velha fórmula reacionária: saber ler, escrever e contar.
A conclamação de Florestan Fernandes de que a luta pela educação pública requer um novo ponto de partida, feita por há mais de duas décadas, é mais atual que nunca. Os setores dominantes hegemonizaram o discurso educacional, conseguindo dirigir intelectual e moralmente vários setores sindicais e intelectuais do campo educacional. Os que vivem do próprio trabalho e são explorados precisam tomar a tarefa de “reinventar o público” como um desafio estratégico da classe, pois, caso contrário, os setores dominantes irão difundir as competências que convêm ao capital para mais de 55 milhões de crianças e jovens sem contraponto à altura.
Essas lutas devem estar articuladas com os setores democráticos e comprometidos com a educação pública nas universidades, escolas, entidades acadêmicas, pois envolvem uma áspera batalha de idéias. Seria um grave erro deixar de contar com a energia criadora de estudantes e professores que produzem conhecimento crítico. Mas não será a universidade que impulsionará esse movimento, daí a responsabilidade diferenciada dos trabalhadores e de suas organizações em propiciar espaços de produção de conhecimento novo em suas próprias organizações e em coletivos da classe, nos moldes das universidades populares cuja maior inspiração, entre nós, é a Escola Nacional Florestan Fernandes.
Por Roberto Leher, Professor da Faculdade de Educação da UFRJ. Artigo publicado no portal do MST.
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