Em 2014, o Colégio Estadual Fernando Pessoa, localizado num bairro carente de Valparaíso (GO), sofreu uma transformação radical. Os alunos substituíram as roupas comuns por fardas bege. A portaria e os corredores passaram a ser patrulhados por policiais armados. O diretor civil foi trocado por um comandante militar. Os professores começaram a trajar jalecos brancos. As aulas só começam depois que os estudantes enfileirados assistem ao hasteamento da bandeira nacional. O nome ficou mais longo: Colégio da Polícia Militar de Goiás Fernando Pessoa. A escola foi militarizada.
— De todas as transformações que fizemos, a mais importante foi resgatar a autoridade do professor. Ao contrário do que acontece em outras escolas, aqui ele consegue se impor, é respeitado pelos alunos e trabalha sem medo — afirma o comandante do colégio, capitão Eric Chiericato.
Nas escolas militarizadas (ou cívico-militares), o prédio, os professores e o currículo escolar continuam sendo do governo estadual ou da prefeitura, mas o diretor, a segurança e as regras internas de disciplina passam a ser da Polícia Militar ou do Corpo de Bombeiros.
Trata-se de um modelo escolar que o governo federal quer ver espalhado por todo o Brasil. Logo no dia seguinte à sua posse, em janeiro, o presidente Jair Bolsonaro cumpriu uma das promessas de campanha e criou no Ministério da Educação uma subsecretaria incumbida de incentivar estados e municípios a transferir a direção de suas escolas para os policiais ou bombeiros.
As primeiras experiências com a militarização do ensino datam da década passada. Aos poucos, o modelo foi se expandindo. Atualmente, funcionam nesses moldes perto de 200 colégios estaduais e municipais em quase todos os estados.
Em termos numéricos, Goiás é o líder nacional, com 60 escolas estaduais nas mãos da Polícia Militar. Em Roraima, há 19. Os colégios que costumam ser militarizados são os do ensino médio e os da última etapa no ensino fundamental (do 6º ao 9º ano).
O MEC escolheu a capital da República como piloto. A pasta destinou verbas para que, até o fim do ano, 40 escolas do Distrito Federal sejam entregues à gestão militar. Dessas, quatro já foram militarizadas. O dinheiro federal deve ser aplicado na infraestrutura e na capacitação dos profissionais.
Em abril, representantes do MEC participaram de uma audiência pública na Assembleia Legislativa de Minas Gerais para tentar convencer os deputados estaduais a aprovar a educação militarizada — a adoção do modelo exige lei específica. Minas é um dos poucos estados que não têm nenhuma escola cívico-militar.
A disseminação desse modelo, contudo, é controversa. Especialistas em educação discordam da nova política do MEC. No Senado, as escolas militarizadas também têm defensores e críticos.
De acordo com o Ministério da Educação, a militarização do ensino traz três grandes benefícios: os alunos ficam mais disciplinados e obedientes, a violência na escola despenca e a aprendizagem aumenta.
O modelo que o MEC apoia é inspirado nas escolas militares, que pertencem às Forças Armadas, às Polícias Militares e aos Corpos de Bombeiros. Comparadas com as escolas militarizadas, a grande diferença é que as militares não têm ligação com a rede pública de ensino e destinam quase todas as suas vagas aos filhos dos militares.
No primeiro dia de aula, os estudantes recebem uma agenda com o regimento disciplinar da escola. As regras os proíbem de sentar-se no chão fardados, mascar chiclete, dobrar a manga da camiseta de educação física, fazer demonstrações públicas de afeto (no caso de namorados), usar óculos chamativos, pintar a unha e o cabelo, deixar a barba crescer, chamar o professor de “você” (o regimento escolar prevê “o senhor” e “a senhora”). Também é considerado transgressão não prestar continência aos militares da escola.
Os alunos perdem pontos no quesito disciplina quando desrespeitam o regimento. A depender da pontuação descontada, eles podem ser reprovados ou expulsos ainda que tenham obtido boas notas nas provas escritas.
O professor de filosofia da educação José Sérgio Fonseca de Carvalho, da Universidade de São Paulo (USP), entende que a disciplina das corporações militares é incompatível com a escola:
— É uma disciplina que prevê a obediência cega. Numa guerra, quando o comandante grita “avançar”, os soldados têm que obedecer e jamais questionar. No meio militar, é preciso que seja assim. Na escola, ao contrário, a obediência cega não é uma virtude. O estudante precisa querer conhecer as razões, argumentar, criticar e eventualmente contrapor-se ao pensamento dominante, porque é assim que a ciência e o conhecimento evoluem. Na escola, exige-se a disciplina para o estudo, não a disciplina militar.
Carvalho afirma que o esquema militar desconsidera a pluralidade que deveria ser característica do ambiente escolar:
— Quando observo um exército marchando, eu vejo um bloco único fazendo o mesmo movimento, e não as individualidades e as singularidades de cada um. Quando essa lógica é levada para o ensino, a experiência escolar se empobrece. O que se faz é a conformação, e não a formação dos alunos. Não é possível que este nosso mundo seja tão maravilhoso que tenhamos que ajustar todos os jovens a ele. Para mim, isso é treinamento, adestramento. Educação não é.
O senador Styvenson Valentim (Pode-RN), discorda. Ele é policial militar e foi o responsável pela recente militarização de um colégio estadual localizado num bairro pobre e violento de Natal. Segundo Styvenson, a obediência é, sim, necessária na educação:
— As pessoas estão confundindo liberdade de pensamento crítico com libertinagem. Regras servem para manter a sociedade coesa e pacífica. Assim como o filho precisa obedecer ao pai, o aluno precisa obedecer ao professor, que é hierarquicamente superior. Não tem que questionar. A criança que é desobediente hoje certamente vai se tornar um adulto desobediente amanhã, com consequências negativas para a sociedade. É com obediência que o cidadão se forma.
Nas escolas militarizadas, a cada mês, um aluno é alçado ao posto de chefe de turma. Como tal, é dele a responsabilidade de manter os colegas comportados. Caso perca as rédeas, perde pontos no boletim disciplinar. Outra missão é apresentar a turma ao professor. No início de toda aula, o chefe se levanta da carteira, dirige-se a professor, presta continência e, em alto volume, informa qual é o “efetivo” da sala, quantos alunos estão presentes e quantos faltaram. Apresentação concluída, ele ordena repetidamente aos colegas “sentido” e “descansar” e só diz “sentados” quando eles por fim conseguem fazer os movimentos em perfeita sincronia. Se o aluno tiver seis aulas no dia, fará esse ritual seis vezes.
O senador Styvenson afirma que os professores não estão preparados para lidar com alunos “que chegam armados ou sob a influência de álcool ou drogas”, o que é motivo suficiente para que policiais militares estejam dentro das escolas:
— Se determinada escola se encontra em paz, a polícia não precisa estar lá, até porque isso seria uso ineficiente do efetivo. A polícia precisa estar onde falta segurança. Se é dentro da sala de aula, ela vai estar dentro da sala de aula. Se é dentro do ônibus, ela vai estar dentro do ônibus. Se é dentro da sua casa, ele vai estar dentro da sua casa. O professor não consegue, sozinho, lidar com alunos violentos. A situação é grave. É por isso que existe tanto clamor para que policiais ocupem as escolas públicas.
No Colégio Fernando Pessoa antes da transferência para a PM goiana, as paredes viviam pichadas, professores eram ameaçados pelos alunos, drogas circulavam livremente e, no caso mais extremo, um estudante foi assassinado na frente dos colegas. O capitão Chiericato, comandante do colégio, diz:
— Água e óleo não se misturam. Quando assumimos o comando, os estudantes que tinham predisposição para a bandidagem foram logo embora. Quando viram uma escola com 20 policiais, eles não se sentiram à vontade para continuar agindo. Não temos mais bandidos infiltrados na comunidade escolar querendo matar aluno e professor. Esse é um dos motivos pelos quais tantos alunos querem estudar aqui. Neste ano, tivemos 1.300 candidatos para as 120 vagas que abrimos.
A diferença no currículo pedagógico das escolas militarizadas de Goiás é uma disciplina chamada noções de cidadania, que, segundo o capitão Chiaricato, é uma versão contemporânea da antiga educação moral e cívica.
— Estamos resgatando os valores que as escolas ensinavam nas décadas de 1960 e 1970 e que se perderam no decorrer dos anos.
Na avaliação da professora Andrea Mara Vieira, da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), a Polícia Militar só entra nas escolas porque falhou na vigilância das ruas:
— A violência não nasce dentro da escola, mas fora dela, na sociedade. A escola é apenas um microcosmo da sociedade. Se o entorno fosse um lugar seguro, a escola também seria. Para a Polícia Militar, é mais fácil cuidar da segurança dentro da escola, porque o ambiente é menor e controlado e todos os alunos são obrigados a obedecer às ordens do comandante, inclusive os professores. A PM deveria se concentrar na sua atribuição constitucional, que é fazer policiamento ostensivo e zelar pela segurança da sociedade.
A professora da UnB entende a militarização de escolas como uma reação à evolução da sociedade:
— O mundo já mudou. Estamos na era da internet e das redes sociais. A forma de nos relacionarmos intersubjetivamente e com o mundo é outra. Os sujeitos hoje estão mais diversos e fluidos, não têm um papel definido. A velha forma positivista de agir e pensar, por meio de binarismos, ficou para trás. Isso incomoda os mais conservadores, que não conseguem aceitar a mudança. Como não entendem certos comportamentos do jovem, esses conservadores os interpretam como atos de desobediência ou até de violência e fazem de tudo, inclusive apoiar um modelo escolar antiquado, para enquadrar a nova geração à força nos moldes de uma sociedade que passou. A militarização do ensino vai na contramão da evolução do mundo.
A militarização fez o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb, que mede o aprendizado dos alunos) do Colégio Fernando Pessoa dobrar. Em 2009, antes de ir para a gestão da PM, o Ideb da escola no ensino fundamental era 2,9. Hoje está em 5,9.
De acordo com o major Marcos Rabelo, da Secretaria de Educação de Goiás, a evolução é semelhante nas outras 59 escolas militarizadas do estado.
— É um modelo que comprovadamente tem resultados positivos e que é aprovado por alunos, pais, professores e comunidade. Diariamente recebemos pedidos de cidadãos e de deputados estaduais para a militarização de mais escolas estaduais — afirma.
O major Rabelo explica que o governo de Goiás pretende ampliar a militarização, mas não ao ponto de alcançar todas as escolas estaduais:
— Quando generalizamos esse modelo, tiramos a liberdade de escolha do pai e do aluno. Ninguém é obrigado a estudar numa escola militarizada. Quem está nela é porque quer. Esse é apenas um entre os vários modelos de educação que existem.
Nas escolas militarizadas de Goiás, em cerimônias que por vezes contam com a presença de prefeito e vereadores, os melhores alunos de cada sala são homenageados com medalhas, que passam a fazer parte da farda deles até o fim do ano.
Os pais normalmente pagam uma taxa mensal, que é voluntária e costuma ficar entre R$ 50 e R$ 100, para melhorar o espaço físico. Graças a essa taxa, o Colégio Fernando Pessoa tem ar-condicionado e projetor do tipo data show em todas as salas, biblioteca, laboratórios de informática e ciências, sala de reforço escolar, curso de música e aulas de muay thai (boxe tailandês).
A professora Miriam Fabia Alves, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás (UFG), avalia o modelo militarizado cria duas castas de escolas dentro da rede pública:
— Temos poucas escolas que recebem toda a atenção e funcionam bem e muitas escolas, todo o restante, que ficam esquecidas e não funcionam. Essa solução mágica chamada militarização é excludente e não resolve os problemas da educação nacional.
Ela aponta alternativas. De acordo com a professor da UFG, a educação avançaria se cada novo governo abolisse o hábito de acabar com as políticas públicas do governo anterior para começar tudo do zero e se os gestores públicos se dedicassem a cumprir as metas previstas no Plano Nacional de Educação (PNE).
Para o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), o MEC deveria priorizar os institutos federais, escolas que oferecem ensino técnico de nível médio e “têm mostrado ótimos resultados”:
— Como política geral, a militarização de escolas não faz sentido. Parece mais um diversionismo do que uma solução verdadeira. Os profissionais da educação estão capacitados para dirigir as escolas e merecem o nosso respeito.
O Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), que reúne representantes das 27 unidades da Federação, também diz que a melhoria do ensino tem outros caminhos e cita, entre vários exemplos, a abertura de mais escolas de tempo integral.
Fonte: Agência Senado em 17/06/2019.
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