Durante um café com parlamentares da bancada evangélica no Palácio do Planalto, na manhã de 11 de julho, Jair Bolsonaro entregou o jogo: literalmente lamentou que, por lei, o presidente deva escolher e empossar reitores indicados pelas listas tríplices das instituições federais de ensino. Formadas pelos três candidatos mais votados em eleições dentro das universidades, as listas são uma maneira de garantir a autonomia universitária.
“Ali virou terra deles, eles é que mandam. Tanto é que as listas tríplices que chegam pra nós muitas vezes não temos como fugir, é do PT, do PCdoB ou do PSOL. Agora o que puder fugir, logicamente pode ter um voto só, mas nós estamos optando por essa pessoa”, declarou Bolsonaro, sinalizando a intenção de privilegiar candidatos alinhados a ele para ocupar as reitorias, independentemente das escolhas expressas pelas comunidades acadêmicas - professores, funcionários e alunos.
O discurso é o mesmo do ministro Educação Abraham Weintraub. “Uma parte dos reitores veio do passado e tem ligação com PSTU, PSOL, PT, essas coisas maravilhosas. Mas tem uma parte que não é”, ele disse em entrevista ao Estadão no fim de agosto. A expectativa é que a escolha de reitores mais abertos ao bolsonarismo poderia contribuir para a adesão das universidades ao Future-se, programa proposto pelo governo federal que prevê que as universidades e institutos federais contratem uma organização social para gerir suas atividades e tenham investimento privado.
Embora Bolsonaro critique o aparelhamento das instituições por partidos de esquerda ou centro-esquerda, em governos anteriores os reitores empossados eram eleitos pelas próprias comunidades acadêmicas – e os presidentes apenas chancelavam o resultado dessas consultas internas, nomeando os primeiros colocados na lista. Essa tradição se repetiu por 15 anos – e foi rompida justamente pelo novo governo.
Até agora, Bolsonaro já fugiu à regra em metade das nomeações de reitores de universidades federais previstas para este ano – e em um Centro Federal de Educação Tecnológica, o Cefet, no Rio de Janeiro. Das 12 nomeações, ele escolheu reitores com poucos votos ou até mesmo fora da lista tríplice em seis delas. São as seguintes:
1. UFFS – Universidade Federal da Fronteira Sul
Data da nomeação: 30 de agosto
Reitor nomeado: Marcelo Recktenvald, último colocado na lista tríplice
Alvo de diversos protestos desde a posse, o professor Marcelo Recktenvald se define como “cristão conservador” na internet. Entre outras disciplinas, ministrou aulas de “espiritualidade e liderança” no curso de administração da universidade – “Jesus Coach”, de Laurie Beth Jones, era um dos livros indicados na bibliografia básica. Apoiador de Bolsonaro, Recktenvald teve apenas quatro votos do conselho universitário – Anderson André Genro Alves Ribeiro e Antônio Inácio Andrioli, professores concorrentes ao cargo, receberam respectivamente 26 e 19 votos. Em nota oficial, a direção da UFFS diz que a nomeação de Recktenvald “não representa o projeto democraticamente legitimado pela comunidade universitária da instituição”.
2. UFC – Universidade Federal do Ceará
Data da nomeação: 19 de agosto
Reitor nomeado: José Cândido Lustosa Bittencourt de Albuquerque, 2º colocado na lista tríplice
A UFC havia sido a primeira universidade do nordeste a rejeitar o programa Future-se. “O que se escancara, aos nossos olhos, é que se encontra em marcha uma estratégia para reduzir a presença do Estado [da União] na garantia do direito à educação e, ao mesmo tempo, abrir à financeirização do ensino público, transformando-se a educação em mercadoria que tem o lucro – e não o compartilhamento, a geração e difusão do conhecimento – como objetivo final”, dizia a nota da universidade de 14 de agosto, ainda sob o comando do reitor Henry Campos. Poucos dias depois, mal tomou posse, o professor Cândido Albuquerque aderiu ao programa. “A universidade brasileira precisa acordar para essa nova realidade do mercado de trabalho, precisamos dar aos nossos alunos novas e modernas habilidades para que estejam preparados para o futuro. Precisamos inovar, empreender e internacionalizar as novas ações. E o programa Future-se contará com a nossa contribuição”, afirmou, em Brasília. Albuquerque teve 9 votos no conselho universitário, enquanto Custódio Luís Silva de Almeida teve 25. Na consulta à comunidade, Albuquerque recebeu apenas 610 votos, ante a 7.772 de Almeida (o que corresponde a 64,8% do total).
3. UFVJM – Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri
Data da nomeação: 10 de agosto
Reitor nomeado: Janir Alves Soares, último colocado na lista tríplice
Reitor entre 2015 e 2019, o professor Gilciano Nogueira disputava reeleição e estava na primeira posição na lista tríplice na universidade. Em entrevista ao jornal O Estado de Minas, em 11 de agosto, questionou o fator político na decisão do governo. “A democracia na instituição foi ferida de morte. Para Brasília, foi só uma decisão. Para nós, afeta o destino da instituição”, criticou. “O presidente diz que não quer reitor com viés de esquerda e quer que tenha capacidade de gestão. Basta olhar os números da universidade. Em termos de viés, passei por seis ministros da Educação. Fui presidente do fórum reitores de Minas Gerais. Se identificou viés em mim, gostaria de saber qual”, questionou Nogueira, que recebeu 27,37% dos votos válidos na consulta aberta. Com uma proposta de gestão para “encontrar a melhor maneira de aproveitar os recursos humanos, físicos e financeiros” da universidade, Soares, novo reitor escolhido por Bolsonaro, obteve 5,21% dos votos.
4. UFRB – Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Data da nomeação: 1° de agosto
Reitor nomeado: Fábio Josué Souza dos Santos, último colocado na lista tríplice
Foi preterida a professora Georgina Gonçalves dos Santos, que liderava a lista da universidade, tanto na consulta acadêmica junto aos alunos, quanto no conselho universitário. Georgina publicou uma carta aberta questionando a decisão presidencial. “Não podemos minimizar o que ocorreu. A pergunta é: por que não foi respeitado o desejo da comunidade da UFRB? Por que o governo brasileiro interferiu na normalidade institucional nomeando o terceiro indicado? Não podemos ser ligeiros ou precipitados nessa análise mas sim, investirmos todo nosso esforço de compreensão para entender o que aconteceu. Racismo? Homofobia? Misoginia? Nenhuma ingenuidade nos será perdoada”, criticou a docente, que recebeu 17 votos no conselho universitário. Professor de pedagogia, Santos recebeu 3 votos e foi escolhido. Curiosamente, ele pode ser chamado de petista: filiado ao partido desde 1999, já presidiu a sigla na cidade baiana de Amargosa.
5. UFTM – Universidade Federal do Triângulo Mineiro
Data da nomeação: 17 de junho
Reitor nomeado: Luiz Fernando Resende dos Santos Anjo, 2º colocado na lista tríplice
O professor Fábio César da Fonseca, que tinha sido eleito pelo colegiado e pela comunidade acadêmica, foi preterido na escolha. Ele foi filiado ao PT (entre 1990 e 2005) e ao PSOL (de 2007 a 2018). Em nota, Fonseca considerou a decisão uma “afronta” à autonomia universitária. “Trata-se de uma nomeação ilegítima, desrespeitosa e provocadora de instabilidades institucionais. Uma nomeação geradora e intensificadora de problemas na UFTM, pois nasce fragilizada, traz, em sua essência, a marca indelével da ilegitimidade e o caráter antidemocrático e antiético. No âmbito da UFTM, a nomeação do 2º colocado é ainda uma afronta à moralidade e à eficiência administrativa”, escreveu Fonseca, cuja chapa recebeu 3.187 votos na consulta interna, realizada em junho do ano passado. Anjo obteve 2.649 e, na época, acusou “indícios de irregularidades” no pleito ao Ministério Público Federal, que arquivou e desconsiderou a denúncia.
6. UFGD – Universidade Federal da Grande Dourados
Data da nomeação: 11 de junho
Reitora nomeada interinamente: Mirlene Damázio, que não estava na lista tríplice da universidade
Em março, o colégio eleitoral definiu a seguinte lista tríplice, em ordem: Etienne Biasotto, Jones Dari Goettert e Antonio Dari Ramos. Entretanto, o Ministério Público Federal abriu ação civil pública para questionar o pleito, sob argumento de que a formulação da lista foi antiética e desrespeitou o princípio da representatividade. Em abril, o Ministério da Educação pediu para a universidade refazer o processo eleitoral. No imbróglio, o MEC interveio e nomeou a professora de pedagogia Mirlene Damázio, que não estava na lista tríplice, como reitora pro tempore. Na primeira reunião com estudantes, foi chamada de “interventora”.
7. Cefet-RJ – Centro Federal de Educação Tecnológica do Rio de Janeiro
Data de nomeação: 15 de agosto
Diretor nomeado interinamente: Maurício Aires Vieira, que era assessor de Abraham Weintraub
Físico gaúcho e ex-assessor do ministro Abraham Weintraub, Maurício Aires Vieira não tem vínculo acadêmico no Rio. Segundo o ministério, o processo eleitoral do centro está sob “análise administrativa” e, até a conclusão, foi designado um diretor-geral temporário – não foram divulgados detalhes das denúncias de irregularidades que impediram a posse do professor Maurício Motta, o mais votado na consulta interna da instituição. Hostilizado por estudantes ao entrar no campus, Aires Vieira também foi tratado como “interventor”.
Nas universidades restantes, foram nomeados os primeiros colocados nas listas tríplices na UFRN, no Rio Grande do Norte, UFRJ e Unirio, no Rio de Janeiro, e UFV, em Minas Gerais. Ainda faltam as nomeações de novos reitores na UFMA, no Maranhão, e UFPE, em Pernambuco. Em Pernambuco, o desfecho deve demorar: um grupo de 168 professores e empresários está contestando a lista tríplice da universidade. Liderado por um apoiador bolsonarista, o coronel da reserva da PM Luiz Meira, o movimento Docentes pela Liberdade levou ao MPF uma denúncia de “conduta irregular” na composição da lista.
As canetadas das intervenções
Por lei, o reitor e o vice-reitor de instituições federais de ensino são nomeados pelo presidente, que avalia a lista elaborada pelo colegiado das instituições, composto por professores (que representam 70% do grupo), funcionários e estudantes (os demais 30%). Em algumas universidades, adota-se o modelo paritário (o peso dos votos de professores, funcionários e estudantes é igual, 33,3%, a despeito da diferença numérica de votantes). Formalizar a escolha da consulta interna da universidade (isto é, nomear o primeiro colocado da lista tríplice) é uma forma de respeitar a autonomia universitária.
Mas, em diversas notas à imprensa, o MEC vem martelando o argumento de que não há hierarquia entre os indicados das listas tríplices. “A relação é enviada para o Ministério da Educação e a palavra final é do presidente da República”, diz o site oficial do MEC. E, na escolha dos novos reitores, o governo leva em conta até as redes sociais dos candidatos para se certificar de que eles estão alinhados com o governo. Os deputados de cada estado ajudam o governo a levantar a ficha de cada um dos possíveis reitores.
A intervenção não termina na nomeação – até porque os reitores perderam poder no novo governo. Em maio, Bolsonaro assinou um decreto que tira dos reitores a autonomia para nomear dirigentes (como diretores e pró-reitores) de instituições federais, que terão que passar pelo crivo de Onyx Lorenzoni, ministro-chefe da Casa Civil. Os indicados a ocupar cargos nessas instituições serão investigados pela Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, e pela Controladoria Geral da União.
Em julho, Weintraub também assinou a portaria 1373/2019, que puxa para o ministério da Educação a prerrogativa de nomear e/ou dispensar cargos nas instituições de ensino.
As ações foram consideradas “ataques” à autonomia de universidades, institutos federais e centros de educação tecnológica. A assessoria jurídica do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior, o Andes-SN, considera o decreto inconstitucional. “É mais uma tentativa do governo federal de controlar as universidades públicas e destituí-las de caráter republicano. Tirar a nossa autonomia para eleger, entre nossos pares, quem vai assumir os cargos do cotidiano do trabalho”, definiu, em nota, Eblin Farage, secretária-geral do sindicato.
Fonte: The Intercept Brasil em 02/10/2010, por Juliana Sayuri.
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