Desapontado, mas não surpreso, diz o viral da internet. Quase toda declaração do ministro da Educação, Abraham Weintraub, mereceria essa legenda-meme. Defender que o país só tem espaço para os melhores, por exemplo, nos dá muito o que pensar. Melhores, em quê, ministro? Como apontar os campeões? Garantir chances justas a todos? E o que fazer com "os piores"?
Penso que é o tipo de pergunta que precisa ser feita sempre que se defende a meritocracia. Parece lógica a ideia de premiar as pessoas de melhor desempenho. A história é pródiga em alternativas mais danosas, como a transmissão de benefícios por meio do compadrio ou da hereditariedade. O problema é que a realidade quase sempre se apresenta mais complexa que a definição gelada de "mérito".
A crítica clássica é a da igualdade de oportunidades. Sabe-se que fatores como nível socioeconômico, raça e gênero interferem diretamente nas chances que uma criança vai ter ao longo da vida. Isso é ainda mais verdadeiro em sociedades desiguais como a brasileira. Não tem jeito: é preciso promover algum tipo de nivelamento ou compensação que implique em ajudar mais quem mais precisa.
Não apenas os governos, mas nós, como sociedade, temos feito pouco nesse sentido. Ao contrário: cresce a grita contra cotas, bolsas, reforços e outros mecanismos compensatórios. Sem um esforço consistente de reparação, a escola acaba tendo o efeito inverso ao esperado: amplifica as desigualdades de origem, deixando sem horizonte crianças e jovens que não ultrapassam os funis sociais – entrevistas de emprego, concursos públicos, vestibulares e outros processos seletivos. Numa sociedade de escassas oportunidades, os "piores", na acepção do ministro da educação, são a maioria.
Complicadores adicionais: geralmente, os desempenhos são medidos por provas. Vale refletir um pouco sobre o que elas são: processos estanques no tempo que simplificam o conteúdo medido. Há crueldade não desprezível em definir o futuro de um adolescente com base na quantidade de letras a, b, c, d ou e assinaladas durante três, quatro, cinco horas.
Megaprovas tipo vestibulares – como um todo, as chamadas "avaliações em larga escala" – são importantes para aferir o quanto se aprende no sistema educacional. Servem para construir indicadores nacionais e regionais, mas são pobres para medir o desempenho individual e, principalmente, para indicar o que precisa melhorar no ensino e na aprendizagem – a avaliação deve ajudar a aprimorar a educação e não ser instrumento de recompensa ou punição.
Não se trata de jogar fora os exames, mas de lembrar que existem outros instrumentos: entrevistas, portfólios, pesquisas, trabalhos em grupo, autoavaliação, análise biográfica… Muitas universidades do exterior recorrem a um combo de métodos para selecionar seus alunos. E não é preciso ir longe: há escolas no Brasil – são muitas! – revolucionando a forma como se avalia o que o aluno aprendeu.
E há o que me parece ser o ponto principal: o que mesmo estamos avaliando? Há uma nostalgia equivocada do passado que pede à educação um retorno exclusivo aos conhecimentos clássicos: ensinar o dois mais dois, alfabetizar como nas antigas cartilhas etc. Ocorre que pensamentos do tipo "no meu tempo é que era bom" já não dialogam com a sociedade complexa que tempos diante de nós. Hoje, um aluno competente – em português prosaico, uma criança "sabida" – precisa dominar um feixe de conhecimentos, mas também de procedimentos (o como fazer) e de atitudes e valores.
O jogo complicou? Sim, mas isso é coisa boa! É possível ser o melhor em muitos campos. Alguém sem tanta aptidão para a Matemática pode se revelar um ótimo mediador de conflitos. Um aluno bom em Geografia também pode brilhar na criação de games e assim por diante. E há pessoas que não terão tanto destaque em alguma área e que, ainda assim, desempenharão função importante na construção de uma sociedade mais justa e humana. Talvez sigam precisando de auxílio por um tempo mais longo. Devemos esquecê-las, como sugere a fala de Weintraub? Não. Pelo menos é assim que deveria ser num mundo em que a solidariedade é um valor mais forte do que o mérito.
Desaponta, mas não surpreende, que o governo atual não pense numa educação para todos. Sorte nossa que a sociedade não é feita apenas de governos. Podemos e devemos sonhar e lutar por uma educação que ajude cada um a ser o melhor que puder. Nessa visão generosa, ao contrário do que pensa o ministro, há espaço para todos na sociedade do século 21.
Este é o texto de estreia deste novo espaço. Por aqui, nossa tarefa é falar de educação. É algo que tenho feito ao longo da última década, tanto como professor da educação básica quanto como docente do ensino superior, e em minha vida como jornalista. Fui editor da revista e do site Nova Escola e, até bem pouco tempo atrás, mantive o blog Em Desconstrução, no site Universa, aqui mesmo no UOL. Se tiver um tempinho, passe por lá: o arquivo de um ano e meio de textos seguirá no ar.
Agora, aportamos em Ecoa. Que legal é ajudar a construir um espaço para falar de causas e de mudanças positivas na sociedade! Vou falar dos problemas, mas não só. Paulo Freire, o patrono que tentam silenciar, dizia que a denúncia precisa vir acompanhada do anúncio – a apresentação de alternativas, possíveis soluções, caminhos para seguir em frente. É verdade que o momento não está para otimismo, mas isso não impede que a gente assuma uma postura animada e confiante para enfrentar os desafios. Vamos juntos?
Fonte: ECOA Blogosfera UOL por Rodrigo Ratier em 01/10/2019.
* Articulando esclarece que o conteúdo e opiniões expressas nos artigos assinados são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do coletivo de educadores.
Nenhum comentário:
Postar um comentário