sábado, 11 de maio de 2024

Como está o mundo pós pandemia de COVID-19*


O Covid-19 trouxe à tona a ruína das ideologias, sistemas e regimes que durante décadas sustentaram as crenças e valores do Ocidente. O capitalismo como sistema dominante no planeta se mostrou incapaz – também – de lidar com a pandemia. Quem melhor geriu essa crise foi a China e boa parte dos países onde se aplica a socialdemocracia (Dinamarca, Finlândia, Nova Zelândia – coincidência ou não, países comandados por mulheres no momento em que a pandemia assolava o planeta). A opressão do Capital falhou em resguardar seu bem mais precioso, o consumidor, empurrando-o para o front da precarização laboral e do negacionismo. Direitas e esquerdas mundo afora sucumbiram à perplexidade e só conseguiram repetir em seus discursos chavões ultrapassados, esquivando-se de aproveitar o momentum para abordar questões essenciais que servissem para lidarmos com esse "novo normal" de crise permanente e generalizada. A pandemia que se instalou em 2020 é uma resposta da Natureza ante a destruição ecológica imposta pelos sistemas político-econômicos inaugurados pelo neoliberalismo. O desafio está posto: é necessário buscar meios alternATIVOS e criATIVOS de pensar e viver. 

Governos e lideranças terão de fomentar novas situações para acomodar os cidadãos nessa realidade cada vez mais hostil do ponto de vista ambiental e social; situações que propiciem transformações e inovações, científicas e tecnológicas, mas também comportamentais e culturais. A evolução da informatização aponta para uma progressiva liberação do tempo de trabalho, o que abriria espaço para um ócio criativo em escala. Há de se ter um contramovimento que contorne a escravização das pessoas pela tecnologia e a alienação dos trabalhadores pela mecanização e automação. Essa imposição mercadológica provou gerar apenas angústia, desemprego, marginalidade, neuroses e violência. O bom seria que essa nova fase política abrisse caminho para que a humanidade reinventasse uma coexistência salutar com o meio ambiente e consigo mesma. É possível, sim, conciliar progresso com bem-estar sem cairmos em sistemas econômicos e governamentais totalitaristas; basta não deixarmos que o lucro monetário dite as regras do jogo.

Essa nova organização deve reorganizar a produção de bens materiais, buscando valorizar o nível da vida afetiva e emocional dos seres humanos, pois a mudança do clima é uma realidade, e os cataclismas e pandemias dela derivados não discriminam; não escolhem hora e lugar para acontecerem. A lição que tiramos do Covid-19 é que somos descartáveis. Até agora a humanidade só tem dado saltos empurrada pelas desgraças, mas o que se tem constatado é que aprendemos muito pouco com essas experiências dramáticas. Depois de tantas guerras, terremotos, maremotos, erupções vulcânicas, pragas naturais, continuamos agredindo o meio ambiente e a nós mesmos. 

Com tudo o que descobrimos graças à Ciência, sabemos quais seriam as medidas ideais a tomar para mudar nosso procedimento de vida rapidamente. Durante essa pandemia foi possível constatar que os governos têm, sim, bilhões de dólares que poderiam ser destinados à melhoria de vida de seus cidadãos em vez do pagamento de juros da dívida pública ou a processos movidos por empresas bilionárias. Mas também sabemos que se não lutarmos, se não fizermos pressões por mudanças, iremos continuar reféns desse sistema neoliberal e desumano que domina o nosso planeta atualmente. 

Os mecanismos de dominação não estão apenas nas estruturas de produção (bens e serviços), mas também na mídia, principalmente na publicidade e propaganda, que sustentam o status quo. O poder transformador do cidadão é canalizado para o do consumo, gerando uma massa de oprimidos; partidos, sindicatos e movimentos sociais, meios de organização desse poder transformador, reproduzem, quase sempre, os mesmos modelos autoritários que bloqueiam a inovação e a liberdade de expressão. Este é um problema-chave que o novo pensamento ecológico-social terá de enfrentar: até mesmo as forças que tentam contestar as regras do jogo estão inconscientemente cooptadas pela hegemonia.  

O capitalismo, hoje, domina o conjunto da vida econômica, cultural e social do mundo globalizado, sobrepujando a subjetividade e o psiquismo das pessoas. Impregnou-se de tal forma que não enxergamos sua atuação sobre como interagimos com o mundo. Através da redes sociais, última fronteira de dominação dos desejos e pulsões humanas, dá-nos a ilusão de identidade e auto importância, reafirmando crenças, incentivando o individualismo e criando bolhas. É quase impossível, por métodos tradicionais e conhecidos, opor-se a tão sofisticada técnica de manipulação. A ação política e sindical posta em prática nos embates do século XX não tem a devida malícia. Devemos travar novas batalhas na vida cotidiana dos indivíduos, nas suas relações domésticas e de vizinhança e até mesmo nas relações éticas, principalmente as profissionais. Não devemos apenas buscar o consenso, é preciso também trabalhar com o dissenso, contemplar o coletivo sem sacrificar a produção singular de existência humana. Atentemos para as cinco necessidades elencadas pelo psicanalista Erich Fromm e pelo psicólogo Abraham Maslow. Com esses conceitos em mente, combatamos o individualismo exacerbado que o neoliberalismo tenta nos impelir. 

É escandalizante que governos "salvem" empresas e deixem de salvar pessoas; que deixem de investir em Saúde, Educação e programas sociais para evitar que o 1% fique insatisfeito ou o mercado fique "nervoso". Pior ainda é constatar que há uma massa de excluídos sequestrada por uma retórica vazia e ilusória de que o Estado é o único e maior culpado por suas mazelas. Em suma, o que torna singular a fase atual é o apoio de grupos que são, em verdade, os mais prejudicados pela lógica neoliberal. Atualmente, a necropolítica adotada pelas nações beligerantes, EUA, Rússia, Israel, obtém justamente o apoio da população que vai morrer. Isso é algo que foge de qualquer padrão lógico, mas que reflete a eficácia com qual a revolta da massa foi capturada e subvertida pela revolta da elite. 

Ao que parece, em um primeiro momento, sob uma análise psicossociológica ainda incipiente, é que a pandemia de 2020 provocou rachaduras na ideologia neoliberal que privilegia a rentabilidade econômica em detrimento das necessidades individuais. A classe trabalhadora branca e empobrecida vê a salvação no populismo de ultradireita. Mas em último grau, esse retrocesso ou reacionarismo, na verdade ecoa também aspectos positivos. A prevalência do lucro em relação à saúde e à vida foi questionada em todos os países. O neoliberalismo está pressionado por mudanças e, embora alguns países ensaiem um isolamento em sua própria decadência, o caminho para a sua superação será pela socialdemocracia ou pelo capitalismo de Estado. 

O mercado insiste em manter os aparelhos ligados, mas esse sistema moribundo pode ser enfim derrubado por meios transversais e transdisciplinares. A política ambiental apenas antecipou a ecologia generalizada do futuro. Ela impõe a reavaliação da finalidade do trabalho e das atividades humanas em função de critérios outros que os de rendimento e lucro. É urgente a democratização dos meios de comunicação por grupos autônomos e representativos da sociedade civil: o fim do monopólio supõe iniciativas comunitárias de internet, rádio e TV livres. A crise do capitalismo pós-Covid-19 abriu um leque de oportunidades no planeta Terra. Agora cabe a nós humanos saber reconstruir-nos como sociedade, efetivamente.

* Marcos Alexandre de Souza Gomes é Mestre em Psicologia, escritor na Alimento Literário e editor do Articulando Educadores.

** Articulando esclarece que o conteúdo e opiniões expressas nos artigos assinados são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do coletivo de educadores.

2 comentários:

  1. Excelente texto! Questionamentos tanto importantes quanto urgentes!

    Entendo que é libertador exercitarmos uma visão por uma perspectiva diferente da comum, pois a presença constante de um aspecto da realidade tende a torná-lo invisível. Explico de forma metafórica: se dissermos para um peixe que a água é fundamental para a sua vida, ele provavelmente dirá que tal afirmação trata-se de uma tolice, pois ele já procurou a água em todos os lugares e não a encontrou! Ele está certo que a água não existe, ele procurou pela água como se fosse "alguma coisa" e portanto, não foi capaz de percebê-la preenchendo todo o seu mundo submarino.

    Assim também ocorre com a linguagem. Nomes de coisas trazem significados que são sorrateiramente embutidos em nossa psiquê.

    Quero me referir ao binômio Pessoa Física x Pessoa Jurídica.
    Pessoa física somos todos nós. Cada indivíduo é uma pessoa física, é um ser humano de carne e osso. Os objetivos de uma pessoa física são todos os objetivos de uma pessoa, podendo ser uma infinidade deles, tais como, viver, ser feliz, fazer o que se gosta, estudar, trabalhar, constituir família, ser útil à sociedade, enfim, muitos objetivos. Por outro lado, uma pessoa jurídica tem apenas um único objetivo: maximizar lucros. Entretanto, ambas são chamadas de "pessoas"!

    A pessoa jurídica é uma organização de pessoas físicas, portanto, possui natureza diferente da pessoa física. Uma pessoa jurídica constitui uma empresa, uma corporação que deve trazer lucro para os acionistas. Enquanto todas as pessoas físicas que trabalham para esta empresa representam CUSTO e devem ser MINIMIZADOS para que o LUCRO seja MAXIMIZADO.

    Desta forma, vemos que o objetivo da pessoa jurídica está CONTRA os objetivos das pessoas físicas. Terá maior lucro a empresa que pagar os MENORES SALÁRIOS. Terá maior lucro as empresas que gastarem menos em todas as áreas que favoreçam humanos de carne e osso.

    As empresas crescem sem limites tornando-se maiores do que nações. que estão sendo invadidas e controladas pelas corporações. Como exemplo, cito a BLACK ROCK, grupo que controla um ativo de US$ 10 trilhões. Isto equivale a 5 vezes o PIB do BRASIL.

    É urgente modificar o objetivo da corporação para que esta recoloque a pessoa física ao seu lado e não no lado oposto. Não temos a fórmula para a solução desta equação ainda, mas pelo menos já sabemos que o bem estar da sociedade depende diretamente deste debate.

    Um forte abraço e seguimos na luta de conscientizar as pessoas físicas.

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  2. Perfeito Mário Freire. Temos que rever a relação pessoa jurídica versus pessoa física, pois quando existe o lucro este é privado, fica com as empresas e acionistas, mas quando se tem prejuízo esse é repassado para todos e a sociedade paga o pato.

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