domingo, 30 de novembro de 2025

Maracanã, cicatriz aberta, por Paulo Baía*


Duplo assassinato no Cefet Maracanã é uma expressão da convergência entre misoginia estrutural, falhas na saúde mental e a crescente vulnerabilidade de espaços educacionais no Rio de Janeiro. 

No fim da tarde de 28 de novembro de 2025 o tempo dobrou de sentido no pátio do Cefet RJ, unidade Maracanã. Havia o rumor habitual das aulas que terminavam, dos estudantes que conversavam, dos servidores que organizavam o fim do expediente. A essa coreografia cotidiana sobreveio algo raro, quase impossível de acreditar. Um intervalo de segundos se dilatou como se todo o ar tivesse sido envenenado. Dentro do prédio as duas profissionais da educação estavam em seu gabinete de trabalho, a diretora pedagógica Allane de Souza Pedrotti Matos e a psicóloga Layse Costa Pinheiro. Ali, no espaço onde recebiam alunos, acolhiam conflitos, analisavam demandas e orientavam trajetórias, foram brutalmente assassinadas por um colega, João Antônio Miranda Tello Ramos Gonçalves. Depois dos disparos ele caminhou alguns passos e tirou a própria vida.

O que aconteceu naquele gabinete não é um episódio isolado que se extrai do noticiário e se arquiva no esquecimento. É a colisão de estruturas profundas da sociedade brasileira com a fragilidade individual de um homem. E é também a denúncia viva de que, mesmo em espaços de educação e ciência, onde a igualdade deveria ser valor inegociável, o ódio de gênero ainda se infiltra. A motivação investigada pelas autoridades é o fato de o agressor não aceitar ser chefiado por mulher. Trata-se de mais uma expressão do machismo estrutural que enraíza a misoginia como método de sobrevivência emocional e, por vezes, como gatilho de violência.

Relatos da imprensa descrevem que, logo após os tiros, um pânico súbito tomou o pátio do Cefet. O barulho seco e ritmado espalhou o caos entre estudantes que, sem entender o que ocorria, correram em direções opostas. Professores trancaram salas. Funcionários chamaram a polícia. Depois desse instante de descontrole veio um silêncio perturbador que se espalhou pelos corredores e salas de aula como neblina. Era um silêncio que não servia para acalmar. Era o silêncio que anunciava o tamanho da tragédia. O silêncio que antecede o reconhecimento de que algo irremediável aconteceu. O silêncio em que uma escola inteira tenta compreender aquilo que não tem explicação possível.

O crime expõe uma ferida que insiste em não cicatrizar. O ódio contra a autoridade feminina e a incapacidade da maioria dos homens conviverem com mulheres em posição de comando. As duas profissionais representavam exatamente o que uma sociedade democrática deveria celebrar. A firmeza ética de Allane. A sensibilidade técnica de Layse. O domínio das suas funções. A capacidade de liderar, orientar e decidir. Eram mulheres inteiras que ocupavam um espaço de poder legitimado. E isso, para muitos, ainda é insuportável. Não se trata de capricho. Trata-se de estrutura. O machismo não se apresenta apenas nos gestos gritantes. Ele se organiza em ressentimentos silenciosos que, quando não tratados, tornam-se perigosamente inflamáveis.

Há também outra dimensão que exige ser tratada com rigor. A saúde mental. O agressor havia sido afastado por questões médicas. Em algum momento recebeu um laudo que autorizava seu retorno. O episódio revela falhas graves em um sistema que ora abandona quem sofre, ora não fiscaliza, ora não oferece acompanhamento contínuo. Quando a misoginia encontra o colapso psíquico, produz-se uma combinação capaz de romper qualquer pacto civilizatório. Não é possível compreender esse crime sem considerar essas duas camadas que se entrelaçam. A estrutura social que inferioriza mulheres. A crise interna de um indivíduo que não encontrou acolhimento suficiente, que perdeu o contato com a realidade simbólica do convívio saudável e do trabalho coletivo.

O gabinete no qual Allane e Layse atuavam diariamente era um lugar dedicado ao cuidado. Ali se atendiam conflitos escolares, vulnerabilidades emocionais e processos pedagógicos complexos. Era um espaço de escuta, orientação e proteção. A brutalidade que irrompeu naquela sala representa uma perversão absoluta da missão do ambiente em que ocorreu. Uma instituição pública voltada à formação de novas gerações converteu-se, naquela tarde, no palco de um trauma que ultrapassa corredores e portões. O Cefet inteiro viu-se atravessado por essa violência que destrói mais do que vidas. Destroça sentidos. Fere laços. Abre rachaduras no imaginário coletivo do que significa aprender, ensinar e construir cidadania.

A tragédia ultrapassa a instituição. Contamina a cidade do Rio de Janeiro, que viveu nos últimos anos ciclos de violência que se infiltram em espaços antes considerados seguros. E contamina o país, que acompanha perplexo repetidos sinais de que a violência de gênero não é exceção, mas parte de um quadro sistêmico. O assassinato dessas duas mulheres reverbera como aviso. As escolas não são ilhas isoladas do mundo. São espelhos do país. Quando a misoginia entra por uma porta, entra junto a história inteira do patriarcado brasileiro. Quando um colapso mental não tratado se transforma em violência, entra junto a negligência do Estado com a saúde psicológica. Quando mulheres são as vítimas diretas, repete-se o padrão perverso de uma sociedade que pune as que se destacam, as que lideram e as que ousam desconstruir assimetrias de gênero.

A dimensão simbólica é arrasadora. Em um ambiente onde vidas jovens são moldadas para imaginar o futuro, o presente mostrou seu lado mais brutal. A morte de Allane e Layse foi também a morte de uma possibilidade de convivência mais justa naquele espaço. Foi o rompimento de uma promessa implícita que toda escola carrega. A promessa de segurança, de pluralidade, de crescimento. Não é possível reparar o que foi perdido. Mas é possível e necessário transformar essa dor em política pública, em vigilância permanente, em revisão dos protocolos de saúde mental, em reconhecimento profundo de que mulheres em posição de liderança não podem ser alvo de ressentimentos que o Estado não monitora e a sociedade naturaliza.

As duas profissionais devem permanecer como referências éticas da educação brasileira. A memória delas precisa ficar gravada não para alimentar luto perpétuo, mas para servir de impulso. Para exigir que o Estado compreenda que saúde mental é política de defesa social. Para que a sociedade entenda que o machismo estrutural não é abstração acadêmica. É engrenagem real que desumaniza, violenta e mata. Para que as escolas se tornem territórios de acolhimento real e não apenas de discursos, e para que o país reconheça que nenhuma democracia resiste quando o ódio de gênero é tolerado como variação de humor ou idiossincrasia individual.

Não há gesto que devolva Allane e Layse aos seus familiares e colegas. Mas há um compromisso que pode crescer a partir dessa cicatriz. O compromisso de que cada sala de aula se converta em abrigo para a autonomia feminina. O compromisso de que nenhum laudo psiquiátrico seja tratado como mera formalidade. O compromisso de que mulheres em cargos de chefia não sejam expostas a hostilidades silenciosas. O compromisso de que vidas não sejam descartadas por ressentimentos de gênero, descontrole emocional e ausência de políticas públicas efetivas.

A tarde de 28 de novembro ainda ecoa nas paredes da escola. O pátio que viu o pânico também viu o silêncio posterior. Os corredores que testemunharam a fuga viram depois a perplexidade muda. As salas de aula que abrigam os sonhos de jovens foram tomadas, naquele instante, por uma sombra que não pertence a elas. Essa sombra precisa ser compreendida, iluminada e superada. Não pela crença ingênua de que o tempo cura tudo, mas pela decisão coletiva de que esse tipo de violência não pode voltar a acontecer. Não em escolas. Não em repartições. Não em qualquer lugar.

O Rio precisa enfrentar essa dor com seriedade. O Brasil precisa olhar para si com coragem. A misoginia não pode ser tratada como detalhe cultural. A saúde mental não pode ser empurrada para o canto escuro da vida privada. A violência de gênero não pode ser naturalizada. Se essas três dimensões continuarem a caminhar separadas, tragédias como a do Cefet continuarão a nos assombrar. E continuarão a destruir o que temos de mais precioso. As vidas que constroem o futuro.

A cicatriz está aberta. É preciso impedir que se torne rotina. É preciso transformá-la em marco de mudança.

* Sociólogo, cientista político, ensaísta e professor da UFRJ.

Fonte: Agenda do Poder em 29/11/2025.

Foto: Paisagem noturna rural - Marcos Alexandre.


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