Foi o motorista do Uber que me perguntou, depois de levar a mãe de um pós-graduando que estuda centopeia, mas além de explicar só para ele, achei legal explicar para todo mundo.
Eu não sei o que ele estuda na centopeia, mas posso começar dizendo que se elas não existissem nossas casas poderiam estar cheias de baratas e formigas. Assim como representam um belo modelo de engenharia mecânica. Olha que ser mais articulado. Sabiam que existem animais que já foram usados como modelo para desenvolvimento de veículos, civis e militares?
Sabiam que tem grupos que estudam detalhadamente os órgãos emissores de sons das baleias pra fazer sonares e coisas do tipo?
Hoje temos um arsenal de anticoagulantes pra tratar pessoas que sofrem tromboses ou preveni-las, por exemplo, porque algum dia algum pesquisador resolveu estudar a saliva da sanguessuga e descobriu uma molécula legal que depois deu ideia pra se buscar outras que faziam a mesma coisa e hoje temos a dabigatrana (Pradaxa). E também temos anticoagulantes porque um dia um outro pessoal resolveu estudar porque algumas vacas da América do Norte morriam sangrando pelas ventas ao comer uns matos lá que descobriram estavam contaminados com um fungo que produzia uma molécula que competia com a vitamina K. Esse pessoal era da universidade do Wisconsin (Wisconsin Alumni Research Foundation – WARF) e por isso deram o nome ao medicamento de WARFarina. Alguém do seu entorno toma ou tomou warfarina. Certeza.
Temos alguns remédios para controlar a pressão, muito usados no mundo todo, porque um dia um brasileiro resolveu estudar o que tinha no veneno da nossa jararaca. Não é sua colega da firma, mas a cobrona mesmo e daí saiu o captopril (Capoten), por exemplo.
Da saliva do monstro-de-gila, um lagartão antipático que nós brasileiros nem conhecemos, saiu medicamento pra diabéticos, a exenatida (Byetta).
Alguns quimioterápicos para câncer muito importantes existem porque alguém resolveu estudar os microorganismos que viviam na terra perto do próprio laboratório e descobriu que esses bichinhos produziam uma substância capaz de matar células tumorais. Esse laboratório ficava na Itália, na costa do Adriático e o medicamento é por isso chamado de Adriamicina, que quem tem alguns tipos de câncer ou é próximo de quem tem, conhece. Assim como tem um quimioterápico usado mundialmente que foi desenvolvido estudando o teixo, Taxus brevifolia, um arvorão grande assim ó!, lá das banda do Canadá.
São infinitos exemplos de estudos descritivos assim que resultaram em grandes descobertas. Eu sou farmacêutico e logo meus exemplos foram de medicamentos, mas tem taaaanta coisa além de medicamentos. Ninguém sabia o que descobriria na maioria das vezes e todos estes projetos causariam estranheza no motorista do uber, no açougue, no escritório de advocacia e por ai vai.
Quando falam da biodiversidade da Amazônia, a maioria pensa nas plantinhas e alguns até dão de ombro porque e daí se tiver um tipo de árvore a menos no mundo? Eu só penso nas moléculas que essas plantas muito loucas que só existem por lá têm. Deve ter molécula lá que cura até burrice. Se você é religioso pode até entender que foi a salvação que Deus nos deu, mas precisa procurar. Se você não é, não muda nada. A biodiversidade continua sendo fundamental porque olha, tem cada molécula irada nessas plantas que NUNCA nenhum químico ou farmacêutico teria ideia de desenhar e sintetizar. A gente precisa ver mesmo na natureza para depois copiar, melhorar, ajustar.
A gente não usa chá nem garrafada não. Observa na natureza, descobre as moléculas e depois sintetiza no laboratório e transforma em medicamento, estudadíssimo antes de ser usado. Não me sai comendo planta por aí, que você pode cair de quatro e ficar, intoxicado. Esse assunto é sério e melhor deixar para os especialistas.
Eu vou falar mais sobre como surgem estes estudos e porque a maioria deles parece muito sem sentido e motivo de piada para a população, mas não são. Em um próximo post porque esse já ficou muito grande.
Wagner Montor*, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.
Enviado por Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo
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sábado, 5 de outubro de 2019
Tem cabimento gastar dinheiro dando bolsa para quem faz doutorado sobre centopeia?*
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